Paulo
Cabral
BBC Brasil
O comissário da ONU
Paulo Sérgio Pinheiro – nomeado nesta semana para Comissão da Verdade no Brasil
– deixou claro em entrevista à BBC Brasil que "punir" responsáveis
por crimes cometidos durante o regime militar não é o objetivo do grupo.
"Não
é papel de nenhuma Comissão da Verdade processar ou punir. Isso é trabalho para
o Judiciário", disse Paulo Sérgio Pinheiro
O jurista observa que a
Lei da Anistia de 1979 – que até hoje impediu a punição de agentes do Estado
envolvidos em crimes da ditadura – é um "fato" que a comissão não tem
mandato para questionar.
"Nosso
mandato é para escrever um relatório, mas não seremos nós que definiremos o
destino desse documento. O relatório vai ter sua vida própria e eu não tenho
como prever o que vai acontecer", diz.
Jurista
com respeitada carreira acadêmica (hoje é professor na Brown University, no
Estados Unidos) e ampla folha de serviços prestados à Comissão de Direitos
Humanos da ONU (atualmente preside o comitê que investiga violações de direitos
humanos na Síria), Pinheiro era desde o início apontado como presença certa na
lista da presidente Dilma Rousseff para compor a Comissão da verdade.
Pinheiro
diz que o Brasil deve aproveitar a experiência acumulada por outras nações em
suas Comissões da Verdade para aprimorar o trabalho no Brasil.
"Desde
o início do projeto acho que ele (o Brasil) se beneficiou da experiência de 40
diferentes 'comissões da verdade' criadas ao redor do mundo desde os anos 80.
Acredito que podemos aprender com comissões recentes, como a do Paraguai; ou do
Uruguai, que teve uma grande participação das universidades; ou do Peru",
afirma.
BBC Brasil - Quando o Brasil é comparado com outros países do
Cone Sul, é comum dizer que estamos atrasados em relação a eles no que diz
respeito a lidar com os crimes contra os direitos humanos de regimes
autoritários. É justa essa avaliação?
Pinheiro - É uma avaliação justa
porque estamos criando essa Comissão da Verdade apenas 27 anos depois do fim da
ditadura. Mas é injusto dizer que nada aconteceu durante o período democrático,
porque em 1995 houve a decisão do Congresso de reconhecer a responsabilidade do
Estado pelos crimes praticados por agentes da ditadura.
Depois
disso, no governo de (Fernando Henrique) Cardoso, a Comissão de Mortos e
Desaparecidos foi criada e diversas reparações foram pagas. E durante o governo
Lula o mandato dessa comissão foi ampliado. Também nesse período muitos
arquivos foram abertos e muita informação foi reunida. Eu acho que a Comissão
da Verdade não vai começar do zero: há muito trabalho que já foi feito nesse
período.
BBC Brasil - Mas a criação da Comissão em si, por que foi tão
lenta se comparada a outros países?
Pinheiro - Eu não acredito que o
estabelecimento de Comissões da Verdade em outros países da América Latina
tenha sido um processo fácil. Olhe o caso da Argentina, por exemplo: desde o
governo (de Raúl) Alfonsín houve vários avanços e recuos. Acho que nós chegamos
tarde com a Comissão da Verdade, mas não sei de nenhum país latino-americano
que tenha pago compensações para (os familiares dos) desaparecidos. Acho que o
Brasil é a única democracia que faz isso.
BBC Brasil - O senhor
acredita que alguém vai ser efetivamente punido com base nos trabalhos ou nas
conclusões da comissão?
Pinheiro - Não é papel de nenhuma
Comissão da Verdade processar ou punir. Isso é trabalho para o Judiciário.
Nenhuma Comissão da Verdade no mundo jamais levou supostos criminosos a
julgamento.
Nossa
função é apurar os fatos e circunstâncias e oferecer isso como uma fotografia
honesta, complexa e completa de uma história que normalmente é contada com
preconceitos e com viés ideológico. Acho que precisamos nos confrontar com a
verdade. O trabalho da comissão vai ser também um exercício de contar a
verdade.
BBC Brasil - Mas essas conclusões poderiam ou deveriam ser
usadas depois como um meio de punir pessoas responsáveis?
Pinheiro - Essa não é nossa função.
Se isso acontecer, vai ser de responsabilidade de outras instituições. Nosso
mandato é para escrever um relatório, mas não somos nós que definiremos o destino
desse documento. O relatório vai ter sua vida própria e eu não tenho como
prever o que vai acontecer.
BBC Brasil - A Lei da Anistia vai ser tema de discussão da
comissão?
Pinheiro - Não é parte de nosso
mandato. Acho que a Lei da Anistia é uma realidade, um fato. A lei que
estabeleceu a Comissão da Verdade descreve assim a Lei da Anistia. Não posso
falar por meus outros seis colegas na comissão, mas não acho que ninguém esteja
muito inclinado em iniciar controvérsias ou polêmicas a respeito da Lei da
Anistia.
BBC Brasil - Agora, como estamos chegando mais tarde, o que se
pode aprender com a experiência de outras comissões que já atuaram em outros
países?
Pinheiro - Desde o início do
projeto acho que ele (o Brasil) se beneficiou da experiência de 40 diferentes
comissões da verdade criadas ao redor do mundo desde os anos 80. Acredito que
podemos aprender com comissões recentes, como a do Paraguai; ou do Uruguai, que
teve uma grande participação das universidades; ou do Peru. Aprendemos bastante
com essas comissões e com certeza elas vão continuar a nos inspirar.
BBC Brasil - Mas algo em particular, talvez não tão óbvio ou de
senso comum, que o senhor tenha observado em outras comissões deve servir de
exemplo?
Pinheiro - Acho que faz muita
diferença quando o governo (no poder enquanto a comissão atua) tem uma política
de direitos humanos. E podemos ver no Brasil que existe há mais de 18 anos o
compromisso por parte do Governo Federal em implementar uma política de
direitos humanos.
Isso
não significa que não tenhamos no Brasil violações dos direitos humanos, mas
faz uma grande diferença o fato de os governos de Fernando Henrique Cardoso,
Lula e Dilma Rousseff terem um compromisso real no que diz respeito à revelação
das verdades do regime autoritário. Eu acho que a vontade política deles, em
termos de avançar com esse processo, foi uma contribuição fenomenal. E isso só
é possível em um regime democrático.
BBC Brasil - O Brasil de fato tem hoje liberdade de expressão e
não há sinais de violações dos direitos humanos por questões políticas. Mas
como o senhor disse ainda é um país com sérios problemas de direitos humanos se
considerarmos, por exemplo, a violência policial ou condições sócio econômicas.
Levando isso tudo em consideração o quanto o país avançou globalmente no que
diz respeito aos direitos humanos?
Pinheiro - Eu acho que há uma
diferença drástica porque nestes últimos governos não houve uma negação dos
problemas de direitos humanos. Diversos países negam o problema, dizem
simplesmente que ele não existe. No Brasil, há transparência.
Não há um único
jornalista na cadeia no Brasil e acho que isso é um grande avanço comparado a
outros países na região. Políticas públicas também conseguiram tirar 20 milhões
de pessoas da pobreza. E embora ainda haja violência policial, acredito que
reformas importantes tenham sido feitas e que haja um reconhecimento muito
maior do problema hoje em dia.
Hoje
no Brasil há uma rede extraordinária de movimentos sociais em todos os frontes
- seja na questão racial, feminina, homossexual, de crianças... - e acredito
que essa própria Comissão da Verdade é em grande parte fruto de pressões da
sociedade civil.
BBC Brasil - Tradicionalmente sabemos que a história é contada
pelos vencedores. Sem procurar questionar aqui a ética ou a correção dos
membros da comissão, há um predomínio de pessoas que se opuseram ao regime
militar. Será que há o risco de a história como sempre ser contada pelos
vencedores?
Pinheiro - Bom, na verdade se esse
for o critério não somos nós os vencedores. A maioria das pessoas na comissão
está entre a vítimas do regime autoritário. Mas isso me parece uma redução da
realidade à existência de dois lados que na verdade não existem. Existe apenas
um lado nessa realidade, que é o que foi reconhecido em 1995: que o Estado
cometeu crimes violando os direitos humanos e que é obrigação do Estado buscar
a verdade a respeito disso.
Acredito
que meu seis colegas têm diferentes trajetórias na vida, mas não acredito que
ninguém esteja interessado em preparar um relatório que seja uma vingança
contra os militares envolvidos no regime autoritário. Acho que essa questão de
'dois lados' não é a maneira correta de ver o tema. A comissão está centrada
nas vítimas e é o lado delas que interessa.
“Tal posição é uma atrocidade contra a democracia e todos os direitos assegurados
pela Constituição de 1988. Não punir homens que enriqueceram e foram
condecorados, honrado pela Nação, uma vez que mataram, feriram, traumatizaram aqueles
que eles deveriam proteger. Mais uma vez, como tudo que tende a punir os poderosos no Brasil, acaba em piza.”
Everton
Marques de Carvalho
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